Os Quatro
Evangelhos na versão de Frederico
Lourenço,
em Particular São Marcos
resumo: Recensão desenvolvida à recém-editada
tradução dos evangelhos canónicos por Frederico Lourenço. Após realçar
brevemente aspectos merecedores de vivo aplauso, apontam-se, sobretudo do
Evangelho de São Marcos, diversos exemplos de limitações relevantes – em
matéria de regras da arte, lacunas, sensibilidade ao carácter específico do
texto evangélico, aspectos retóricos, teológicos, metodológicos e de
interpretação – nesta obra singularmente levada a cabo com a preocupação
confessada de privilegiar a materialidade histórica e linguística do texto. palavras
chave: evangelhos;
tradução bíblica; crítica histórica; Frederico Lourenço. in
interpretatione Graecorum, absque Scripturis sanctis, ubi et verborum ordo mysterium est, non verbum e verbo, sed
sensum exprimere de sensu. São
Jerónimo A
tradução dos Evangelhos canónicos realizada pelo conceituado classicista da
Faculdade de Letras de Coimbra, Frederico Lourenço, e publicada em Setembro de
2016 pela Quetzal Editores, leva já suficiente tempo de recepção para permitir
a quem a tiver lido com sensibilidade adestrada pelas Ciências Bíblicas
partilhar anotações, críticas ou inevitáveis perplexidades. Além dos
comentários a cada secção do volume, esta recensão incidirá preferencialmente sobre
a tradução do evangelho de São Marcos – ora porque o próprio Tradutor o
considera «dos livros mais arrebatadores que alguma vez foram escritos» (p.
159), ora por ser o evangelho que tive oportunidade de melhor aprofundar. O esplendor da forma Capa
dura em tom claro, ausência de imagens por forma a realçar-se o título da
colecção: BÍBLIA; no interior, mancha bem espaçada de texto a negro em delicada
fonte Caslon, reservando-se o encarnado para títulos, cabeçalhos e linha
divisória das notas de pé de página. Não há dúvida: o volume apresenta-se irrepreensivelmente
curado, convidando à aquisição e à leitura. Ao Sumário da obra seguem-se três
artigos introdutórios: à Bíblia grega (p. 15-20), aos quatro evangelhos (p. 21-38)
e ao tipo de grego aí utilizado (p. 39-48). O miolo do tomo contém a tradução e
as notas (p. 51-412), contando cada evangelho com breve nota introdutória de
três a cinco páginas. Duas peças encerram o volume: um quadro temático (p. 415-8),
que ordena alfabeticamente o núcleo de cada episódio evangélico, facilitando a
respectiva localização; e, nas três ultimas páginas, uma breve lista
bibliográfica (p. 419-21). Ainda no plano da forma, não se ignoram a elegância e a sobriedade da escrita que serve o
conteúdo. Valha por todas as numerosas vezes em que parei para ruminar passos
evangélicos inigualadamente trazidos para a nossa língua este desfecho do
episódio do jovem rico: «mas ele, assumindo uma expressão carregada com estas
palavras, foi-se embora entristecido» (Mc 10:22). Dizer melhor o que está em
grego não será fácil. Nas
páginas desta obra saturada de méritos reconhecidos facilmente se verifica,
portanto, o reconhecimento da índole sublime do monumento que Editor e Tradutor
(E. e T., doravante) servem na língua de Vieira. Defeitos numa obra formalmente
modelar, a existirem, só no plano do seu conteúdo, em sede de introduções e de notas,
e sobretudo em sede de tradução. Ora, se é certo que le bon Dieu est dans le détail, não menos certo é que esse exíguo
espaço Lhe é diabolicamente disputado. Com efeito, detalhes de conteúdo
discutível, inexacto ou até infeliz não estão de modo nenhum ausentes deste
volume. Ben-Sira originalmente em grego? Na
p. 15 inicia o T. uma breve apresentação da Bíblia Grega, sustentando que um
rol de sete livros do AT foi originalmente escrito em grego. O livro do Eclesiástico
(Ben Sira, ca. 180 a.C.) ilustra em que
medida tal afirmação não se pode aceitar sem importantes restrições. O T. não
reparou que o seu homólogo do século II a.C. – de nome Jesus – alude, no
prólogo (v. 24 e 30), ao cuidado com que trabalhou «para traduzir este livro», ciente de que «as coisas ditas em hebraico perdem muita da sua força
quando traduzidas <para grego>»
(v. 24).
Além disso, esforços levados a cabo desde 1896 até aos nossos dias já
permitiram recuperar cerca de dois terços do texto hebraico deste livro
sapiencial encontrados em manuscritos antigos e medievais de proveniências tão
diversas como Qumran (50 a.C.), Masada ou Cairo. Um verdadeiro festim para os
estudiosos esta descoberta de testemunhos de Ben Sira em hebraico, consultáveis
em <www.bensira.org>. Regras da arte Em
Ciências do Novo Testamento (NT doravante), e designadamente no estabelecimento
do texto bíblico sob escrutínio, na tradução e na respectiva interpretação, é expectável
o uso de versões actualizadas das ferramentas standard. Essas incluem as seguintes. 1. A última edição do Novum Testamentum graece, de Nestle-Aland, elaborada por uma vasta equipa
internacional de textualistas, e através da qual se procura reconstituir
criteriosamente o texto dos evangelistas e dos apóstolos a partir dos milhares
de testemunhos escritos, não raro discrepantes entre si. O problema de, para Os Quatro Evangelhos, o T. ter recorrido
à 26ª edição (de 1979) de Nestle-Aland reside na contingência de, logo na 27ª
edição, terem sofrido revisão não despicienda, quer a disposição do texto, quer
o seu aparato crítico e, principalmente, no facto de, na última (a 28.ª, de
2012), o próprio texto acolher numerosas alterações e relevantes novidades. 2.
Na mesma linha, para melhor se compreenderem as opções de Nestle-Aland na
fixação do texto, muitas delas assumidamente não definitivas, é indispensável um
comentário crítico ao texto, conjugado com comentários detalhados a cada evangelho.
O Textual Commentary, de B. Metzger,
cuja segunda e última edição é de 2005, constitui nesse sentido fonte indispensável
de que o T. aparentemente prescindiu. 3.
Estranha-se também a 11ª edição (de 1961) da gramática de grego do Novo
Testamento, obra dos filólogos alemães Blass-Debrunner-Rehkopf, quando é sabido
que esse clássico vade mecum tem sido
objecto de contínua revisão e actualização desde a sua publicação em 1896 (a 18.ª
edição alemã é de 2001). 4.
No tocante a fontes, além de uma dezena de indicações bibliográficas
mencionadas ao longo do volume, as escassas três páginas de Bibliografia
apresentada para o escrutinadíssimo universo evangélico exibe fragilidades e
desequilíbrios inauspiciosos. O Lexicon
de Liddel & Scott é o único dicionário citado; concordâncias dos evangelhos
ou dicionários exegéticos, nenhum(a) se refere. Dos escassos quarenta e três
títulos bibliográficos, onze dizem respeito só ao quarto evangelho e igual
número aos Sinópticos; os restantes versam sobre questões de língua, história
do século I, Bíblia, etc. O predominante sotaque inglês e alemão das fontes secundárias
quase silencia a literatura em francês, espanhol, italiano ou português (quatro
títulos, um dos quais do próprio T.), sendo ainda notória a dependência (nove artigos)
da série Ascensão e Declínio do mundo
romano.
Mas as falhas neste particular da escassez bibliográfica talvez devessem ser
atribuídas às carências das nossas faculdades de humanidades e das respectivas
bibliotecas em matéria de res biblica. Lacunas (ou gralhas) na tradução Os
judeus consideram inválido, porque incompleto, qualquer exemplar do rolo da
Escritura destinado à sinagoga em que falte ou esteja incorrecta uma só letra
que seja. Nessa linha venerável, falhas que uma tradução da Bíblia não se devia
permitir – sob pena de ser ipso facto inválida
– são as gralhas e, menos ainda (caso sucedesse em passos como o da ressurreição,
p.e.), as omissões. Onze casos em Marcos. 1.
Lapsus calami. Numa controvérsia com
as autoridades judaicas, o imperativo na boca de Jesus («agarrai-vos à tradição dos homens») só pode ser indicativo («agarrais-vos»);
do mesmo modo, em 11:18 lemos «os sacerdotes», em vez de «os sumos sacerdotes»;
e na Ceia Pascal lemos «partiu e deu-lhos» em vez de «partiu e deu-lhes» (14:22) – lapso evidente porquanto,
logo a seguir (v. 23), igual fórmula no original está correctamente traduzida. 2.
Omissões (intencionais?) de palavras ou
frases. Em Mc 12:37 pode compreender-se a intenção de verter com «E a multidão ouvia-o» uma aparente redundância
(«E a numerosa multidão ouvia-O») que
Marcos usa seis vezes (5:24; 6:34; 8:1; 9:14; 10:46) e que só ali o T.
inexplicavelmente não traduz, sendo aquela a sexta e última vez que «numerosa multidão» aparece; e desta vez
já não algures na província, mas no próprio Templo. Intrigante, também, no
mesmo capítulo 12, a omissão de membros inteiros na controvérsia dos saduceus
com Jesus sobre a ressurreição: «E o terceiro da mesma maneira» no v. 21, a
propósito dos irmãos que não lograram gerar «descendência» (sperma; o T. verte à letra: «semente»)
em favor do irmão, falecido sem deixar filhos; nova omissão logo a seguir, no
v. 23 («Na ressurreição, quando
ressuscitarem»), um pleonasmo que, apesar de não vir atestado em
manuscritos importantes, não deixa de ser congruente com o estilo binário de
Marcos.
Ainda no mesmo capítulo, lemos que a viúva pobre «deitou no tesouro mais do que
todos os outros», em vez do que realmente consta no agreste original: «deitou
mais do que todos os outros que deitaram no
tesouro» (12:43). Lacunas
mais comprometedoras do sentido ocorrem nos derradeiros capítulos de Marcos. No
discurso escatológico, lemos «Estas coisas <serão> o princípio das dores» (13,8), em vez de,
figurativamente, «... dores de parto [ôdinôn]», explicitando-se nessas dores quer a sobrecarga
apocalíptica do anúncio da era messiânica (presente também em S. Paulo 1 Ts 5:3;
e no Apocalipse 12:2) quer um implícito renascimento
do mundo através das dores de parto da Igreja dos primórdios, geradora de
filhos na fé para o Filho morto sem descendência (Gl 4:27; 1 Ts 2:7). No
contexto da Páscoa, o T. faz Jesus dizer apenas: «Onde está a sala em que eu possa comer a Páscoa
com os meus discípulos?», em vez de «Onde está a minha sala em que comerei
a Páscoa com os meus discípulos?» (14:14), salientando-se a insistência do
Jesus pascal nos possessivos minha/meus
para vincar que aquela era a sua Páscoa.
Perante os que O prendiam, em vez do que lemos em 14:49 («Todos os dias eu
estive no templo a ensinar e não me prendestes»), Jesus diz mais: «Todos os
dias estava junto de vós no templo a
ensinar e não me prendestes», realçando-se em Judas e nos algozes um
distanciamento mortífero em relação a Jesus. E, a Jesus, Pilatos não diz somente
«Não respondes nada?», senão também «Não respondes nada? Vê de quantas coisas te acusam» (15:4-5), evidenciando-se a estupefacção
do Procurador romano perante o inesperado silêncio de Jesus em resposta à
catadupa de acusações que sobre Ele impendem («acusavam-no de muitas coisas», 15:3).
Crucificado e morto Jesus na cruz, lemos: «José de Arimateia, que também
buscava o reino de Deus, atreveu-se a ir
procurar Pilatos» (15:43); além de suprir a lacuna, propomos: «José de
Arimateia, que também aguardava o reino de Deus, afoitou-se a entrar em <casa de> Pilatos». Quase
sempre, conforme veremos, este verbo «procurar» é reservado pelo evangelista
para a busca hostil que tem Jesus como seu alvo. 3.
Expurgação do final longo. Neste
volume, uma das principais refracções da opção crítico-histórica do T. incide
certamente na expurgação do «final longo» (i.e. Mc 16:9-20), encerrando por
isso o segundo evangelho com um estranhíssimo «pois» e a enigmática reacção de fuga
e pavor por parte das mulheres ante a notícia da ressurreição de Jesus (16:8). Poucos
disputam hoje que aqueles doze versículos «foram mais tarde acrescentados» (p. 213),
conforme indica a melhor tradição textual. Todavia, a decisão do T. de nem
sequer os publicar em nota é desconcertante. Primeiro porque contraria quer a
decisão canónica das Bíblias cristãs quer mesmo a deliberação competente da
Comissão Editorial das Sociedades Bíblicas Unidas em apresentar de Marcos a
versão canónica. Depois,
porque impede o leitor de ajuizar por si próprio da objectividade com que o T.
qualifica como «fraquíssimos» (p. 213) os doze versículos em causa. E, enfim,
que melhor razão para os incluir senão o facto de Mc 16:1-20 como um todo estabelecer,
a modo de inclusio conforme
evidenciam os vários contactos textuais, um expressivo jogo de simetrias com o
prólogo (Mc 1:1-15)? A passiva teológica Tributários
do modo judaico de referir Deus, evitando nomeá-lO, os evangelistas conotam-nO
como agente implícito através de circunlocuções. O conhecido passivum theologicum é uma delas. Se não
desconhece este expediente – recorrente nos ditos de Jesus ao ponto de Joachim
Jeremias o colocar entre os sinais indicadores dos ipsissima verba Jesu
-, o T. pelo menos obscurece-o quando, sobreinterpretando, propõe «a vós é dado conhecer o mistério», em vez de simplesmente
«a vós é dado o mistério» (4:11). Ou
quando, velando o sentido, propõe «Se será dado a esta geração um sinal!» (8:12),
explicando em seguida que «o sentido desta frase é negativo. A oração
condicional, desprovida de oração principal e com o valor semântico de uma
afirmação negativa, é habitualmente interpretada aqui como semitismo linguístico»
(p. 185). Sem dúvida, mas cumpre explicitar também a maldição implícita,
servida pelo condicional e com sentido de negação reforçada.
Proporia, por isso, «não será <certamente>
dado sinal algum a esta geração». No
discurso escatológico de Jesus aos discípulos antes da Paixão (Mc 13), em vez
de «[quem perseverar na perseguição] esse salvar-se-á»,
não deveria ler-se «[quem perseverar na perseguição] esse será salvo» 13:13)? A mesma operosidade divina é salientada em
conexão com a revelação da divindade de Jesus. Assim, melhor do que «E transfigurou-se diante deles» talvez
fosse explicitar que Jesus «foi
transfigurado diante deles» (9:2). Do mesmo modo, quando Jesus antevê que,
ressuscitado, se adiantará aos discípulos na Galileia, em vez de «Mas depois da minha ressurreição», propõe-se «depois
de eu ter sido ressuscitado» (14:28).
E, relativamente àquilo que um «jovem» (neaniskos)
na manhã do primeiro dia da semana anuncia às mulheres tomadas de pavor, seria
de ler à letra, não que Jesus «Ressuscitou» (16:6), mas sim que «Foi ressuscitado». Retórica bíblica Privilegiar
a transmissão do sentido, como faz a chamada «tradução dinâmica», pode revelar-se
insuficiente em tradução bíblica,
e não é essa a aposta deste T. quando assume como desafio deixar-se «levar pelo
exotismo... do texto tal como ele é» (46). Só que o acesso a essa alteridade do
texto implica, além do mais, reconstituir-lhe a figura de composição e, depois,
vertê-la na medida possível. É o próprio teórico da tradução G. Mounin a
reconhecer, na peugada de Beauchamp e de Meynet, que a forma do texto bíblico «deveria ser traduzida», qual porta do sentido; e não por quaisquer razões «pseudo-teológicas»
mas por motivos relacionados com «as funções das estruturas do próprio texto e
com o seu funcionamento».
Em breves palavras: no momento de conceber a tradução literária em função do
seu público, o tradutor bíblico não deveria ignorar a dimensão visual do original, a sua dispositio, a figura de texto (paralelismos, quiasmos, construções concêntricas, repetições,
ordem das palavras, etc.) em que o Verbo revelado vem habitar. Não sendo este o
lugar para uma argumentação sistemática sobre as especificidades da retórica
bíblica e semítica,
dois tipos de exemplos tirados de Marcos ilustram o que se perde quando a dispositio descortinável não é tida em
conta. 1.
Problemas de delimitação. Cada novo capítulo
dos evangelhos abre com uma lista respeitante aos títulos das diferentes perícopes
aí contidas. Todavia, o texto evangélico traduzido vem-nos apresentado
linearmente em parágrafos sucessivos. Como não se vislumbra o critério regente
da delimitação das perícopes anunciadas no título, torna-se inevitável tropeçar
em problemas transversais à obra inteira, aqui ilustrados com os exemplos seguintes.
Logo
a inaugurar o primeiro capítulo de Marcos, eis a delimitação que encontramos do
primeiro parágrafo: «1Princípio da boa-nova de Jesus Cristo, filho
de Deus. 2Conforme ficou escrito em Isaías, o profeta: [citação bíblica]»; segue-se o segundo
parágrafo, com início no versículo 4: «Apareceu João batizando no deserto e
anunciando um batismo...» Ora, existe alargada convicção de que a gramática e a
composição destes quatro versículos
obrigam a ler o versículo 1 como parágrafo isolado, e que o parágrafo
subsequente corresponde aos versículos 2-4. Deste modo, este segundo parágrafo
forma uma proposição comparativa cujo primeiro membro (prótase) abrange os
versículos 2-3, correspondendo o segundo membro (apódose) ao versículo 4. A sugestão
é, pois, que se leia: «2Conforme
ficou escrito em Isaías, o profeta: 3[citação bíblica]), apareceu João batizando no deserto e anunciando um batismo...».
Esta ligação sintáctica dos versículos 2-3 ao versículo 4 – i.e. a profecia bíblica sobre um «mensageiro»
enviado «à frente» e «clamando no deserto» (2-3) coordenada com o aparecimento histórico de João Baptista
que anunciava «no deserto» (4) – transmite ao leitor o esquema profecia-cumprimento, i.e. a noção de
que é fiável o Deus que inspira «Isaías», pois a Sua palavra cumpre-se em João
Batista, que efectivamente aparece (egeneto, 1:4) no palco
histórico-salvífico «à frente» do aparecimento
(novamente egeneto) de Jesus (1:9). Situação similar no capítulo 6, onde o T. recorta seis títulos,
mas depois verte o texto, não em seis, mas em onze parágrafos, ficando-se sem
saber onde inicia e onde termina cada perícope. No primeiro parágrafo,
correspondente à perícope intitulada «Jesus incompreendido em Nazaré», não se compreende
que fiquem de fora os versículos 5-6, os quais, remetidos para um longo segundo
parágrafo obviamente não ligam bem com a perícope subsequente, intitulada «Missão
dos doze». 2.
Entre repetitio e variatio. No diminuto diálogo com o publicano
(Mc 12:14), ao imperativo de Jesus («Segue-me»),
o narrador acrescenta, não que Levi «foi atrás
dele», mas que efectivamente Lhe obedeceu, conforme mostra a repetição do verbo
usado por Jesus «seguiu-O». Quando Jesus
se defende dos que Lhe imputam possessão diabólica, usa repetidamente os verbos
dividir e subsistir; todavia, o T. propõe variações: «Se um reino se dividir
contra si mesmo... não pode perdurar [subsistir,
no original]; e se uma família se dividir ... não pode subsistir; ... Satanás está dividido e não poderá subsistir» (3:24). Esta
propensão à variatio e à substituição
de termos iguais por termos ou expressões equivalentes, além do inconveniente
de obscurecer a intenção expressa do evangelista, acaba por gerar incongruências
importantes. É justamente isso o que sucede na tradução dos termos consecutivos
(«anunciar/arrependimento-arrepender-se» (kêryssein/metánoia-metanoein) que encontramos em três
instâncias de Marcos: no início do evangelho, João «anunci[a] um baptismo de mudança»
(1:4); por seu lado, Jesus «proclama...:
‘mudai de mentalidade’» (1:15), ao passo
que, no seu tirocínio missionário, os discípulos «pregaram o arrependimento»
(6:12). A variatio na tradução de
termos que invariavelmente se apresentam unidos atraiçoa a intenção do redactor
– tangível através da repetitio – em
evidenciar a identidade e a continuidade
ininterrupta do ministério de João,
de Jesus e dos discípulos ao serviço do anúncio da conversão a Israel.
Em
resumo: o melhor fruto de se explicitarem estas e outras relações vocabulares
será certamente o de permitirem aceder à visão de conjunto de uma obra,
estabelecida quer através dessas mesmas relações quer da identificação metódica
dos limites e da coerência interna das unidades de texto. Cruces interpretum Reconhece
o T. que, no seu «estilo simples» e «popular», o segundo evangelho é «dotado de
intenso encanto literário» (p. 159). De acordo. Mas terei de acrescentar que Marcos
é certamente, entre os evangelistas, o menos amigo dos tradutores. Para os
leitores poderem vislumbrar a natureza das dificuldades em traduzir este evangelho,
deverão imaginar como se haveriam enquanto tradutores perante um texto grego com
centenas de ocorrências da conjunção paratáctica kai («e») a coordenar frases e parágrafos independentes entre si («E Jesus
disse... E partiram...»); ou como
procederiam em relação ao presente histórico que atravessa a narrativa marcana de
lés a lés. A
explicação para a maioria das dificuldades que assolam a tradução deste evangelho
está toda nas breves palavras do especialista E. Maloney: «a interferência da
sintaxe semítica permeia cada uma das páginas do evangelho».
Marcos é, presumivelmente, o mais
semítico dos quatro evangelhos; e não apenas nos planos sintáctico e
retórico, senão também no plano semântico. Vem isto a propósito da expressa indisponibilidade
do T. para demandar o substracto bíblico dos evangelhos.
Esse limite que o T. se auto-impõe de ignorar os esforços de tantos por
reconstituírem, não tanto a putativa «versão semítica do texto grego» (p. 44),
mas o palimpsesto bíblico ao qual somos reconduzidos – como sucede em qualquer
hiperligação – através da terminologia evangélica, impede-me de aceitar
soluções avançadas pelo T. para algumas cruces
interpretum na obra marcana. Para ilustrar, bastarão quatro exemplos
tirados do 1.º capítulo de Marcos, em cujo prólogo (Mc 1:1-15) encontro nada
menos que sessenta contactos com vinte e uma obras do AT. 1. Pecados e/ou erros? Não é sem
sobressalto que deparamos com João a anunciar um baptismo «para libertação dos erros [eis aphesin amartiôn]» (Mc 1:4); ou, mais criativamente ainda,
Jesus imprecando contra “quem blasfemar contra o espírito santo” e declarando
que esse tal “é réu de erro eterno» (em
3:29). O hebraico ḥaṭṭa’t (com outros termos da mesma área semântica)
e o grego hamartía... erros? O
T. prevenira na p. 46-7 os seus leitores de que, ao arrepio da tradição consolidada,
ia verter hamartía ora com «pecado»
ora com «erro». Não se ignora que o nosso latinizante «pecado» acolhe várias
nuances que em grego e sobretudo em hebraico se exprimem com variantes lexicais;
mesmo assim, e porque cada palavra tem sua história, o termo «pecado» assegura hoje
em português uma conotação exclusivamente ético-religiosa, ao contrário do
asséptico «erro». O
resultado de tal opção fica ininteligível quando, por exemplo (novamente o
excesso de variatio!), a expressão que
acabamos de ver em Mc 1:4 comparece também em Mc 2:5-10, onde o T. já põe Jesus
a dizer ao paralítico: «são perdoados
[aphíentai] os teus pecados [hamartíai]», seguindo-se na reacção
dos escribas o uso dos mesmos termos em grego: «Quem pode perdoar pecados [aphiénai
hamartías]...?» (2:7.9.10). Observe-se ainda, desta vez no quarto evangelho,
que João Baptista acolhe Jesus como «o cordeiro de Deus, que tira o erro [hamartían] do mundo» (Jo 1:29). Na
nota às palavras de Jesus na Última Ceia («isto é o meu sangue... para libertação dos erros [eis aphesin
amartiôn]», Mt 26:28), explica o T. o seu entendimento do problema: o que
está em causa na pregação de Jesus «é uma libertação como que do «cárcere» dos
erros» e também um novo início» (p. 145). Replicarei então: mesmo se em grego
as imagens subjacentes ao perdão ou ao pecado provêm originariamente de
contextos seculares (económicos e militares), não podemos ignorar na pregação
de João e de Jesus sobre o pecado esta tripla evocação semanticamente poderosa:
(i) da relação pactuada de Deus com Israel, geradora de efeitos
ético-jurídicos como a culpa e a punição; (ii) do sistema sacrificial judaico preconizado na Lei de Moisés, em
particular o Dia da Expiação, ou da catarse colectiva de Israel (Lv 16); (iii) de
promessas dos Profetas como a de um Novo Pacto
escatológico (Jr 31:31-34). Tripla evocação, essa, onde a culpa é pressuposto transversal, sendo o bem almejado a reconciliação definitiva com Deus, Pai de
Israel, e entre aquele povo de irmãos divididos. Se,
pois, o T. dos evangelhos escolhe «erro» para comunicar um conceito de cunho ético-religioso
complexo em extremo como é hamartía, terá
de verter com esse termo aquelas obras onde o mesmo é particularmente
recorrente: Levítico, Salmos, Romanos e Hebreus. A hipótese é perturbadora. 2.
João Baptista: «digno», ou «capaz»? Nas palavras enigmáticas do precursor de Jesus acerca da relação entre
ambos, lê o T.: «Depois de mim vem o mais
forte do que eu, de quem não sou digno
de me inclinar para desatar a correia das suas sandálias» (Mc 1:7); lendo à
letra e tendo em alta conta o subsolo bíblico a que aludem as mesmas palavras, proponho:
«Está a chegar o mais forte [ischyróteros] do que eu depois de mim, a
quem não sou capaz [hikanós] de, inclinado, desatar a
correia das suas sandálias». A
crux é aqui o adjectivo hikanós,
termo técnico traduzido muitas vezes em sentido moralizante («digno»), e tantas
outras em sentido ainda mais enigmático («capaz»).
A decisão depende, primeiro, de notar o fundo jurídico da correlação «mais
forte»/«não capaz»: se um tem um direito mais forte, o outro não é eficazmente detentor
desse direito e, nesse sentido, não tem a mesma capacidade jurídica. Que direito? O direito matrimonial judaico, e
em particular a chamada «lei do levirato» – i.e. o costume, consagrado na Lei,
segundo o qual um irmão, para assegurar descendência ao irmão falecido, toma como
esposa a viúva sem filhos, «redimindo-a» de uma muito temida condição de
desprotecção social. A dramatização deste costume surge no livro de Rute, onde
comparece a terminologia de Mc 1:7 para narrar as vicissitudes da viúva Rute ao
encontro do seu «redentor» Booz, descrito como o parente «forte» e com o direito
adquirido de a tomar para esposa, entrando ambos na genealogia messiânica de David
e de Jesus. A
esta luz, torna-se-nos transparente a mensagem de João Baptista ao seu auditório
original: ciente da sua condição de mero precursor (profeta e sacerdote) e de
que nessas vestes lhe cabia preparar o povo através da pregação e da
purificação ritual para a chegada do Messias Noivo, João afirma a sua incapacidade (jurídica) para tomar para
si e «redimir» o povo com quem Deus contraiu aliança; «redimir» Israel mediante
a união esponsal é prerrogativa exclusiva do seu «Senhor» (1:3), que vai chegar
para renovar a aliança. 3.
Jesus no deserto: «impelido» pelo Espírito, ou «expulso»?
Nas palavras do brevíssimo relato marcano da estadia de Jesus no deserto das
provações, surpreendemos alusões bíblicas particularmente nebulosas. Escolho
aquela que o T. verte assim: «E logo [kaì euthys] o espírito impeliu [ekbállei, presente indicativo] Jesus
para o deserto» (Mc 1:12); propomos antes: «Mas
logo o Espírito O expulsa para o
deserto». Que
a conjunção kai («e» ou «mas»),
reflectindo idiossincrasias da narrativa em hebraico, pode ter valor não apenas
copulativo mas também adversativo está há muito estabelecido.
Justifica-se no presente caso conferir-lhe valor adversativo por força do
contraste entre, de um lado, a presença de Jesus junto da comunidade penitente
(v. 9) e junto de Deus (1:10-11) e, do outro, a saída forçada de Jesus para o deserto,
ao encontro de Satanás e das feras. Mais decisivo é certamente assinalar a
natureza da acção do Espírito sobre Jesus: a forma verbal ekbállei indica, não que o Espírito «impeliu», mas que «expulsa» (no
presente) Jesus da presença de Israel, e da presença audível do Pai, para o
deserto. Expulso de uma original
proximidade com Deus para a terra árida
havia sido também Adão (Gn 3:23-4); expulsos
anualmente do seio da comunidade para o
deserto eram os bodes expiatórios no Dia do Perdão (Lv 16:10). Expulso pois
para o deserto – qual «filho de Adão»,
qual bode expiatório – Jesus como que recapitula na própria carne a condição
pós-adâmica da humanidade inteira; em contrapartida, sairá do deserto provado
pelo seu Adversário e plenamente equipado com o Espírito para iniciar um
ministério de «expulsão» desse Adversário do coração dos «filhos de Adão» seus
semelhantes. 4. Os discípulos «seguiram-nO» ou «perseguiram-nO»? Um incidente intrigante, exclusivo de Marcos (e do NT), envolve
Jesus e os seus primeiros seguidores logo na primeira madrugada do seu
ministério. Jesus desaparece para o deserto (1:35) e Simão reage com alvoroço à
frente de uma comitiva. O T. lê: «E seguiram-no
[katedíôxen] Simão e os que estavam
com ele e... dizem-lhe: «Todos te procuram
[zêtousin]» (1:36). A reacção dos
discípulos, ao contrário de um entusiástico, leal e ordeiro «seguimento» de
Jesus na condição originária de discípulos (1:18.20), foi antes literalmente
esta: «E perseguiu-O Simão…».
Ou seja, cedo se instala contra Jesus o caos, e até a hostilidade, no seio dos
que haviam abandonado tudo e logo se convertem em seguidores, não de Jesus, mas
de Simão, no encalço de Jesus
foragido e «procurado» por «todos». Não
sendo possível alongar mais, sublinharei: (i) a cena decorre em lugar ermo, como
que evocando a primeira provação do Messias (cf. 1:12-3), e muita da linguagem aqui
usada vai voltar a comparecer na derradeira perseguição contra Jesus (14,1.10.43);
(ii) só à luz do ciclo narrativo da ascensão de David ao trono de Israel lido
em chave tipológica (1 Sam 13:1 – 2 Sam 5:10), e mais especificamente de 1 Sam
23:25 (onde comparecem os mesmos verbos perseguir
[katadiôkô] e procurar [zêtein]), se esclarece o enigma desta «perseguição»
movida por Simão: do mesmo modo que na perseguição obstinada de Saúl contra
David estava posta em causa a legitimidade do ungido de Deus, também Simão, o
primeiro discípulo, vai no encalço de
Jesus com um desígnio particular que atenta contra a autoridade do Ungido de
Deus (cf. 1:11). Em
suma, os quatro exemplos evidenciam alguns dos custos de se não explicitar nos
evangelhos o fundo veterotestamentário que lhes confere sentido pleno. Método Surpreendemos
enfim, na p. 18, o pressuposto metodológico e hermenêutico da tradução em
curso: «ler a Bíblia sob um prisma que privilegia, sem a interferência de
pressupostos religiosos, a materialidade histórico-linguística do texto». Que
fundamentação para esta adesão à problematização «crítico-histórica» (ibid.) supostamente garantidora do ponto
de Arquimedes da objectividade; e para a exclusão liminar da fé e de Deus como
componentes essenciais do método? Tirando a alegada contingência de «nas
grandes universidades do mundo» a Bíblia estar «presente sob uma forma
não-religiosa» (ibid.), nenhuma outra
justificação é dada para que o T. tenha ido buscar agasalho científico ao
citado método. Não
sendo questionável a indispensabilidade da crítica histórica, perguntar-se-ia:
que «grande vantagem» (ibid.) há em
emparceirar com uma corrente que, se aplicada com o rigor que se propõe, não
vai além da dissecação histórica do texto defunto? O T. não aponta nenhuma. A
prerrogativa de adoptar um único método de interpretação bíblica não ignorará,
desse método, os limites tantas vezes apontados pelos especialistas. O século
passado, atravessado pela demanda histórica
da Bíblia e, também, pelos controversos e contraditórios resultados
fragmentários desse método que se queria objectivo,
mostrou em que medida os cultores da estrita crítica histórica têm laborado na
crença de que transportam para o presente, cada qual à sua maneira, uma palavra
do passado. Só assim – acreditam – poderá a polifonia da história ser de novo
audível, após a homofonia da interpretação tradicional. E como da sua mesa de
trabalho está excluída a questão da verdade, a Bíblia serve-lhes quando muito
para dela retirarem só o que se coadune com uma práxis previamente escolhida.
O
problema desta perspectiva moldada pelas ciências da natureza está, portanto,
na escassez de autocrítica aos seus pressupostos e aos resultados que produz.
Escassez, essa, que porventura incapacita o T. para reconhecer que os seus
resultados são hipóteses amplamente determinadas pelo seu ponto de vista de
intérprete, e sobretudo para reconhecer que a aceitação da própria interpretação alcançada implica um inter, o estabelecimento de uma ligação com.
Concluindo Que importam
as insuficiências de uma tradução dos evangelhos quando, na verdade, é às
palavras do Apóstolo que cumpriria dar ouvidos: «No fim de contas... por causa
das aparências ou por causa da verdade, Cristo é anunciado; é com isso que eu
me alegro” (Fl, 1:18)? Mas, a um
projecto com a magnitude deste – tradução integral da Bíblia com marca
personalizada – interessarão apenas serviços mínimos? Não parece. E isso permite
acreditar que o T. e o E. não deixarão de activamente se exporem à velha
pergunta: é esta uma tradução correcta?
E correcta para quem? Para a nossa alta cultura, que tão
copiosamente a cita e comenta, esta já é certamente a tradução dos evangelhos – e venha daí quem desdenhe essa glória.
Penso ser essa uma razão decisiva para se não iludir o fundo da magna questão: é uma tradução correcta? Justifica-se alguma
revisão? Em tradução bíblica, tal como em tradução de aeronáutica, a
exactidão dos termos, a sua inteligibilidade total, podem decidir da segurança ou
da falta dela em voo, i.e. da vida e da morte dos destinatários, na terra como
no céu. Cabe, pois,
ao leitor cauto o ónus de decidir em que medida lhe é indiferente que um T. dos
evangelhos prescinda metodologicamente de «pressupostos religiosos», ou que
abdique de algum modo daquele código (daquela «forma de vida») que o re-ligaria,
nas suas trabalhosas vestes de T. e noutras, aos destinatários do Shema’ Israel («Escuta Israel»,
Dt 6:4) e à comunidade de escuta do Logos incarnado. Um código onde até a
ordem das palavras conta.
Epistula LVII. Ad Pammachium. De optimo
genere interpretandi: «na tradução a partir do
grego, tirando as Sagradas Escrituras, onde até a ordem das palavras é Mistério, verto sentido por sentido e não palavra por palavra».
|